segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Inferno - Aqueronte

Eis aqui a continuação oficial do aclamado primeiro capítulo da série Inferno. Se não o leram ainda, antes de ler esse capítulo, confira o anterior aqui :
http://contosdanevoa.blogspot.com/2010/09/inferno-o-comeco.html

Muito grato,
Isaque Lazaro.










“A Ti te invoquei; salva-me, e guardarei os teus testemunhos.” Sal. 119:146


------------------------------------------------------------------------------



Acordei. Sentia um frio bater em minhas pernas enquanto eu abria os olhos ainda grudados pelo sono forçado. Meu corpo doía, aparentemente eu havia repousado em rochas e terra.

Me levantei, limpando os cotovelos e joelhos, uma brisa batia em minhas costas, como se algo no horizonte estivesse tentando sugar tudo que estava perto de mim. O céu era avermelhado, as rochas eram avermelhadas. Tudo iluminado por um sol que não emitia calor, vermelho e imponente no céu. Que lugar era esse?

Olhei aonde estava, era uma velha estrada atrás de mim, mas que terminava num penhasco. Eu não gostaria de pular penhasco abaixo, então, comecei a descer a colina. Minhas roupas não eram mais as que usei durante o pacto. Ao contrário, era uma túnica cinza que mais parecia um vestido até o joelho. Em meu peito, um colar improvisado com um pequeno pingente de ferro repousava. Era tudo que eu precisava.
Descalço, comecei a passar pela estrada escarlate, até que entre duas árvores mortas, secas, e assustadoras, repousava uma placa. Nela li:


“POR MIM SE VAI À CIDADE DOLENTE,
POR MIM SE VAI À ETERNA DOR,
POR MIM SE VAI À PERDIDA GENTE.

JUSTIÇA MOVEU O MEU ALTO CRIADOR,
QUE ME FEZ COM O DIVINO PODER,
O SABER SUPREMO E O PRIMEIRO AMOR.

ANTES DE MIM COISA ALGUMA FOI CRIADA
EXCETO COISAS ETERNAS, E ETERNA EU DURO.
DEIXAI TODA A ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS!”


Estas palavras estavam escritas em tom escuro, no alto de um portal. Pisei dentro, receoso, assustado. Logo que entrei, ouvi gritos terríveis, suspiros, prantos, sofrimento que ecoavam pela escuridão sem estrelas. Lamentos tão intensos e sinceros que me senti perturbado naquele mesmo momento. Abaixei a cabeça, sentado no chão e tampei os ouvidos. Todos esses gritos, vindos de pessoas cujas almas estavam indo para o sofrimento eterno. Pessoas que eu conheci provavelmente estariam por ali. Chorei.

Imaginei tantas pessoas que eu não sabia mais o paradeiro... será que Guilherme estaria aí? E o Felipe? A última vez que eu ouvi falar dele, ele havia sido baleado ao sair do banco... Tudo se responderia por aqui.


-Que lágrimas bonitas, Isaque. Realmente comovente ver você chorando ao lembrar dessas vadias... – Uma voz masculina e irônica disse atrás de mim. Não olhei, mas sabia quem era.

-Não pensei em vadia alguma, maldito. – Respondi.

-Ah, sua mãe não estava no meio, querido? Erro meu... Sabe, até mesmo demônios erram...


Olhei para trás. Era um homem cujo corpo era imaterial, formado de fumaça que vinha de seus pés formandos eu corpo nu e musculoso. Era careca e apenas seus olhos não eram feitos daquela fumaça cinza-escura. Seus olhos eram uma luz intensa amarelada. Me ergui, limpando as lágrimas, e sobrepondo os gemidos do lugar. Gritos de mágoas, queixas, brigas e ira ressoavam em diversas línguas, formando um tumulto que tinha o som de uma ventania.

-Quem é você? – Indaguei o ser.

-Oras, deveria saber quem eu sou! Sou o anjo que tocou os instrumentos mais belos no Céu. Sou um dos filhos que o Criador mais amou! Sou o renegado que atiça as almas que tem fé, sou aquele que possui o direito de ir e vir do Inferno quando bem entender. Aquele que traz a Luz, Lúcifer! Ao seu dispor, belo moço...

-E o que quer comigo? Que fazes aqui?

-Não venha com formalidade bíblica para cima de mim, rapaz. Deixe para os anjinhos e almas condenadas. Pois bem, você fez um pacto conosco e eu estou aqui fazendo a minha parte. Vou te guiar pelo Inferno, e torcer para você entregar sua alma logo. Tenho um crente para atiçar daqui a pouco...

-Quem são essas pessoas que sofrem tanto?

-Pois veja, garoto. Esses gritos ressoam do outro lado desse rio. Consegue ver o rio de águas negras e turbulentas? É o rio Aqueronte.


Olhei para baixo da colina aonde me encontrava, e vi duas filas negras se movendo para um barco enorme, mais parecendo um navio. O rio escuro parecia turbulento, mas o barco não se mexia. Lúcifer prosseguiu.

-As duas filas são filas de almas que acabaram de ser enviadas ao Inferno, e ainda serão mandadas para seus respectivos círculos. Antigamente haviam nove círculos, mas a humanidade gosta de se sujar cada vez mais... Então criamos mais alguns.

-E o que acontece nesses círculos?

-Você faz perguntas demais, e isso está me irritando, garoto... Os círculos do Inferno são locais divididos por pecados, aonde as almas são enviadas para sofrerem o Contrapasso. Algo como “olho-por-olho, dente-por-dente”. Lá eles vão sofrer eternamente pelo que fizeram em vida. A propósito, desça lá. Caronte deve estar embarcando as almas agora. Você não vai querer perder seu barco, vai? Pegue a adaga na árvore.


Dizendo isso, ele sumiu em uma fumaça gelada, fétida e negra. Atrás dele, uma árvore estava perfurada por uma adaga prateada, toda talhada em runas as quase eu não entendia. A árvore possuía dois galhos que envolviam a adaga, como uma pessoa tentando remover uma faca do peito. Além disso, um buraco no caule parecia uma boca, num grito de horror.

Arrepiado pela árvore estranha, removi o quanto antes a adaga do tronco, com um certo trabalho, usando as duas mãos e um pé. Segurei a adaga, e percebi que não era um punhal comum. Esse não era só feito para furar, mas também sua lâmina de corte era a mais afiada que já vi.

Segurei o pingente de ferro do meu colar, e sorri. Me senti confortado, protegido... confiante. De alguma forma o pingente fazia eu me sentir com coragem e forças para seguir em frente. E foi exatamente o que fiz...

Segui descendo uma trilha tortuosa em meio a rochas enormes. Nenhum animal existia nesse lugar, nem mesmo insetos e plantas. Era desolado, horrível. Com certeza não era o mundo material mais. Após alguns minutos, notei na proa do barco gigantesco uma figura fantasmagórica.

Coberto por um manto negro com capuz, maltratado pelo tempo, estava um velho pálido, branco e de pêlos antigos. Ele gritava:

-Almas ruins, vim buscar-vos para o castigo eterno! Abandonai toda a esperança de ver o céu outra vez, pois vou levar-vos às trevas eternas, ao fogo e ao gelo!


Lúcifer estava atrás de mim, olhando minha cara de espanto, com satisfação.

-É Caronte, o barqueiro do Inferno. Pegamos emprestado da mitologia grega... Os monstros no Inferno não são diabos ou almas perdidas, mas sim as imagens de apetites pevertidos, e vivem nos círculos de sua natureza. Ele transporta as almas para o inferno, através de uma moeda de ouro que eles têm dentro de si. Agora, quando fizemos o pacto, não dissemos que estaria incluso transporte, nem vale-alimentação! Boa sorte, alma. Queime no Inferno!


Dizendo isso, Lúcifer sumiu. Minha vontade era enfiar aquela adaga na cabeça dele, mas duvido que conseguiria... como eu iria atravessar o rio? Era por demais turbulento para eu tentar nadar! Eu ia ter que barganhar com Caronte...

Passei a seguir na direção do barqueiro, que estava de costas para mim, dando remadas numa alma que hesitava a entrar no barco. Ele parou, virando-se para mim tão de repente que me assustei e caí de costas no chão. Ele gritou irritado:

-E tu, alma vivente, te afasta desse meio pois aqui só vem morto! Tu deves seguir para outro porto, onde um barco de ouro te dará transporte!


Gelei com a voz ríspida e seca de Caronte. Ainda assim, me ergui e confrontei o velho:

-Aí que te enganas, barqueiro. Não vou para o Purgatório, meu Purgatório é aqui! Vivo como viveu Dante Alighieri há séculos atrás! Agora deixe-me passar, pois não estou aqui por qualquer motivo!

-Alma ignorante, Dante esteve aqui sob mandato de Deus! E você veio aqui porque quis! Agora, que infernos um vivente veio fazer no aqui antes do tempo? Isso não é lugar para excursão, e não vejo ouro em ti! Mesmo assim...
Os olhos vermelhos do barqueiro se abaixaram até meu peito. Eu segurei forte o pingente.

-Nunca, isso nunca! – Gritei em lágrimas. – Tudo menos isso!

-É isso que quero! Algo que tenha valor, algo que tenha importância!! E o que é esse pequeno pingente que tanto te importas, que acabaste trazendo consigo para o Inferno?


Segui para ele com raiva no olhar e adaga em mãos. O velho gargalhou.

-Achas que podes me ferir com isso? Afasta-te, sabendo que não podem te machucar se não machucares ninguém por aqui. Em caso contrário...

-Não vou tentar te ferir, velho. – Interrompi


Ele me olhou intrigado enquanto eu seguia até um mastro, tendo certeza do que faria. Até os condenados na fila me olhavam ansiosos. Coloquei a mão esquerda no mastro, com os cinco dedos bem abertos. Ergui os olhos lentamente, temoroso. Meus olhos encontraram os dele, que esperava ansiosamente por minha ação. Parecia que nunca nada intrigante havia acontecido por lá. Prossegui, sem acreditar no que eu ia fazer para não entregar esse sagrado pingente.

-Sabe, Caronte... vou falar com você sem nenhuma formalidade. Deve saber que os romanos escolheram um dedo para representar o amor.


Caronte sorriu. Sua boca ia quase de orelha a orelha, exibindo aqueles dentes tão horríveis que pareciam de madeira. Gelei. Aquele velho sádico e cobiçador realmente gostou da minha idéia! Prossegui com a voz trêmula:

-... O dedo anelar possui uma veia ligada ao coração. Ou seria uma artéria? Bem, não importa. O amor me levou para o Inferno, então... para me desvincular do amor e cumprir minha missão...


Todos olhavam aflitos. Peguei a adaga e posicionei na primeira junta do meu dedo anelar esquerdo. Respirei fundo e terminei a frase.

-...te ofereço o dedo que simboliza o amor eterno.


Então, cortei meu dedo fora com duas passadas da adaga. A adaga cortava fundo e diretamente, como um bisturi. A dor era imensa, o sangue jorrava de meu dedo, enquanto as almas condenadas começaram a rir descontroladamente. Caronte também ria de meu sacrifício, parecia que o próprio rio Aqueronte, os gemidos no ar, e até mesmo o sol vermelho riam de mim. Não uma risada ridicularizadora, mas sim uma risada do mais profundo tesão sádico.

Eu me ergui, chorando com a dor da perda do dedo, o desespero, o medo. Ergui minha mão , segurando o dedo decepado na primeira dobra do dedo. Minha mão esquerda tinha um pequeno cotoco, quase metade do dedo, aonde eu havia removido ele. Caronte pegou o dedo, tocando minha mão com aqueles dedos longos, secos e gélidos. Com um sorriso, engoliu o dedo inteiro. Foi grotesco, nojento, horrível. Virei o rosto de nojo ao ver uma parte de meu corpo ser profanada assim. Lúcifer me encarava. O sorriso irônico dele não estava mais lá, mas sim uma cara emburrada. Ele soltou o vocabulário:

-Olha só o que você fez! Um segundo que eu me vou e olha para isso!!! O barco está atrasado, essa multidão... Até Jesus está perdendo a paciência com essa demora, garoto. Era para você apodrecer aqui, sabia? E agora... vira uma sessão de automultilação? De masoquismo exagerado? Certo, se você quer tanto assim ir para o Inferno, entre no barco, porque a passagem você conquistou. Agora comece as suas preces... pois será difícil daqui para frente.


Sumindo denovo naquela fumaça negra, ele se foi. Ao virar, subi a rampa dos condenado e achei uma cadeira vermelha esperando por mim. Me sentei e notei que a hemorragia havia misteriosamente parado. Era um milagre?
Não importava mais. Coloquei as mãos em minha cabeça, apertando os olhos, enquanto Caronte repetia satisfeito:

“Almas ruins, vim buscar-vos para o castigo eterno! Abandonai toda a esperança de ver o céu outra vez, pois vou levar-vos às trevas eternas, ao fogo e ao gelo!”

Logo, a rampa subiu e o barqueiro começou a remar. Eu entrava oficialmente no Inferno.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A Canção do Imortal

Vi uma explosão
Vi trevas se partirem
Vi a criação
Vi os vivos caírem


Vi a água, vi a vida
Vi o começo do mundo
Acompanhei tudo, querida
Vi o sofrimento profundo


Vi o homem se organizando
Vi anjos se corrompendo
Vi as guerras começando
Vi o inferno ardendo


Vi o Messias crucificado
Vi o mar partido ao meio
Vi o rico exaltado
E o pobre em devaneio


Vi a praga e a peste
A fome e a dor
Sombras no coração agreste
E o fim do amor


Vi inocentes queimados
Em nome do verdadeiro Deus
Vi ciganos torturados
Por supostos pecados seus


Vi a estupros no matagal
Vi incesto, vi pecado
Vi o dilúvio universal
Vi o mal mais dedicado


Vi o homem sucumbir
Vi a sociedade desabar
Vi a honestidade sumir
Vi a morte se aproximar


Vi nações ferozes
Que atacaram derrotados
Lançando bombas atrozes
Matando um país de condenados


Vi guerra sem motivos
Pobres entregues à sorte
Vi chegar entre os vivos
A infame semente da morte


Vi guerreiros honrados
de uma raça oportunista
Sucumbirem aos pecados
De uma sociedade finalista


Vi o bens intangíveis
Vendidos á quem se retira
Vi cenas inesquecíveis
De desigualdade e mentira


Vi Cruzadas acontecerem
Vi Sangue oferecido
Ví demônios aparecerem
Vi o católico corrompido


Vi rituais profanos
Que entregaram o homem
Que como tudo é passageiro
Chegam, lutam e somem


Vi o homem sucumbir
Com suas nações profanas
Vi o mundo sumir
Nas garras insaciáveis humanas


Ó, Deus, tenha piedade
Peço do fundo do coração
Pois essa humanidade
Não mais merece perdão


Peço piedade para mim, Senhor
Pois depois de tudo que vi
Vi a beleza do mundo depor
E desse mundo sujo sumi

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites More